quinta-feira, 29 de abril de 2010

Adoecer, de Hélia Correia, ed. Relógio d'Água, 2010


Uma mulher que ousou a diferença e viveu sem os espartilhos do tempo, na segunda metade do século XIX e que intrigou a sociedade vitoriana com a estranheza da sua relação amorosa com o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti. Um enigma até hoje de que Hélia correia conhece o segredo. Tanto quanto é detentora do segredo da Literatura.
Era, de resto, muito antigo o conhecimento de Hélia Correia sobre Elizabeth Siddal, em que se reconhece completamente. Foi um conhecimento travado em torno de uma imagem do célebre quadro de John Millais, Ofélia, em que Siddal, a Lizzie do magnífico Adoecer posou. E a partir dessa pintura, a escritora empreendeu uma demanda da modelo, que foi também um mergulho no século XIX inglês, no universo dos pré-rafaelitas e das pré-feministas.
Jaime Rocha, poeta e dramaturgo, acompanhou Hélia Correia nessa peregrinação que os levou a pisar os passos de Siddal e Rossetti. E, nos últimos dez anos, criou uma tetralogia poética, em cujo centro está justamente a shakesperiana Ofélia, quatro livros sobre o amor e a morte, sobre a impossibilidade de possuir o Outro, num ciclo que agora fecha com Necrophilia, uma edição Relógio d'Água. Aqui pode ler o primeiro da meia centena de poemas do novo livro de Jaime Rocha.


Excerto, pág 13-14:

Highgate Cemetery, 2005
Se a pátria assinalar uma pessoa como um cão assinala um candeeiro, a minha condição de portuguesa transporá os portões antes de mim e uma espécie de aviso subirá, fazendo com que as aves estremeçam. A lembrança do outro português que uma noite aqui veio abrir a campa pode ser acordada pelos meus passos? Conhecerá a terra o parentesco que liga a minha carne à carne dele, uma composição de sol e enchidos, de subserviência e fantasia?
Esta não é a hora das visitas. Erguendo os olhos para a subida, vejo que a hostilidade do lugar levanta, exactamente como um nevoeiro. Precisa de repouso, a terra, e engana-se, supondo que fechou a sua entrada. No interior do círculo, estou eu. Passo furtivamente, receando que alguma identidade, não a minha, mas a do meu país, informe os mortos.
O tempo andou aqui com o seu peso, esmagou, quebrou os selos. As encostas abriram fendas. E os caminhantes que parecem rezar dizem apenas em voz baixa a si próprios que a camada do solo superior ainda os protege, ainda isola os seus pés. Que não há perigo de comunicação.
O que está lá no fundo é transtornado pela luz, pelo ar onde circulam pequenas formações da biologia. Os roedores conhecem com certeza modos de comportar-se quando encontram esse súbito vácuo. Mas nós não. Um piedoso corte quebra a linha que vai dos olhos para o pensamento. E os turistas refugiam-se no grupo, amparam-se no braço do vizinho, antecipando algum desequilíbrio. Há um princípio de obscenidade que logo se recolhe sobre si. Se falam sobre Drácula, já baixam ligeiramente a voz. Mas incomodam. Têm um calor próprio, uma espantosa intensidade metabólica. Interpõem-se. Por isso eu espero que eles se retirem, que tomem o caminho para a vila, levando tudo o que não quero aqui, a carne, os seus recursos de alegria.
Eu venho a um encontro pessoal, desses que não consentem testemunhas. Na verdade, conheço esta mulher. Não a criei. Sei mais a seu respeito do que sei sobre as minhas personagens. Pisei já muito chão que ela pisou, toquei em coisas onde teve as mãos. Dormi junto a lugares onde dormiu. Nada dela me é estranho. De algum modo, as nossas vidas já se confundiram pois o tema do duplo, o doppelgänger, estava inscrito em nós como um padrão. Se subo agora o matagal da encosta não é porque me falte o seu horror. É que, tornando-se isto numa história, precisarei de uma noção de fim.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

II
Rafael

Eu nasci na sombra de uma herança que se cria honrada, uma grande herdade. Não se chamava assim, mas agora tanto faz. Sem ter corrido o mundo, parecia-me a mim grande, espalhada aqui e ali, ocupando quase tudo, galgando a cada parcela e cada uma posta a render. Uma casa afidalgada nem sei desde quando, talvez no tempo dos liberais. Ora, mas isso foi na outra ilha, talvez mesmo antes, uma casa que tinha sido desde sempre assim, dizia a minha mãe, e a mãe dela, a avó a balouçar na cadeira, cabeceando, com uma manta de lã grossa aos pés. Todas tinham servido, uma linhagem de ajudantes prestos, prestáveis e pobres.
Uma mão que invisível lhes amassou a memória e lhes talhou as vísceras. Era assim, e ela não se queixava. Tinha a determinação interior arraigada, como se se tratasse do sono de um sonâmbulo que não se deve despertar, de cabeça baixa desvendando o chão, a minha mãe calando sempre quase tudo.
Que eu passasse todo o dia ensimesmado era o menos, ainda era novo, seria de feitio, havia de mudar.
Já era uma sorte termos um tecto, e sempre trabalho e pão. Esse pão nosso de cada dia à mesa todos os dias. Deus seja louvado! Que eu não me queixasse nunca mais, que podia ser punido e levado para longe dela.

O CÃO DAS ILHAS, Maria da Conceição Caleiro, Sextante Editora, 2009, pág. 23.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

I
Zarina

Preferia saber, preferia até que me dissessem que tinhas morrido! Que viessem vozes de longe dizer-mo, e de longe garantir com provas dadas, com o teu sangue pesado num lençol branco, e o vermelho ainda vivo à mostra como na fábaula de Inês tantos anos gravado na pedra, vingando até se deixar amarelecer, vertendo docemente o tempo e a cor. Preferia saber-te morto a não saber mais nada de ti, durante tantos anos, desde um único dia, ou uma só noite que nesse dia não chegou a acontecer.
Preferia velar o teu corpo de perto, tê-lo entre lágrimas a esfriar.
Os donos dos cães antes querem sabê-los mortos a não saber mais nada deles.
Assim como me deixaste, só quando a tua morte tiver acabado eu poderei descansar. Ainda que a forca seja o destino, eu tudo daria para que a noite passada venha de novo e a noite de hoje apenas seja o tempo de ontem. Vivi como uma alma a penar num escombro ainda em pé. Já ninguém vê, ninguém sabe, e só durante a noite sozinha me assaltam nos sonhos as sombras, ou avançam vultos de olhos abertos e eu acordo e tenho medo e acendo a luz.
Na ilha, ficou preso o cão, a ganir toda a noite, Não o sentes? Não o mataram, não tiveram tempo, deram-lhe

O CÃO DAS ILHAS, Maria da Conceição Caleiro, Sextante Editora, 2009, pág. 11

domingo, 18 de abril de 2010

EDUCAÇÃO SEXUAL E SAUDE MENTAL...

Uma relação sexual é, por natureza, muito delicada: envolve duas pessoas, isto é, dois mundos que remetem para outros mundos e pode dar origem a novos "mundos". O sexo é por isso uma actividade altamente arriscada. Por isso também é vivida sempre associada a sentimentos. Essa associação pode ser mais ou menos confusa e ambivalente ou então mais ou menos espontânea e natural. Por exemplo: o sexo pode ser tendencialmente clandestino ou tendencialmente não clandestino. No limite do primeiro caso isso acontece na situação de prostituição; no limite do segundo caso ocorre numa relação de vida em comum assumida nos círculos familiares e sociais (com ou sem casamento). Entre estes dois limites ocorrem cada vez mais situações de "amizades coloridas" expressão que designa, creio eu, o que antigamente se chamava "amantes". Nesta situação o factor clandestinidade tende a confinar a relação entre as duas pessoas às paredes do quarto e portanto centra-a na sexualidade. Esta vivência tem dois efeitos pouco saudáveis que se potenciam reciprocamente: não reduz, antes reforça, eventuais sensações ou representações de (im)potência ou de fraca performance sexual; fecha (literalmente) a relação ao mundo e portanto, a curto prazo, a relação morre. Às vezes antes da relação morre alguém o que, como se sabe, constitui uma tragédia. por todas estas razões seria bom abordar a educação sexual com urgência e serenidade. A dificuldade na sua implementação é sobretudo um sinal da sua complexidade e delicadeza...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

LES HERBES FOLLES, um filme de Alain Resnais...


Um filme sobre o casamento, o amor, a paixão ou a violência?

segunda-feira, 5 de abril de 2010

IR PARA CASA...


Uma mulher, um homem e ... muitas viagens!

sexta-feira, 2 de abril de 2010

NELSON CASCAIS E ANDRÉ FERNANDES, HOJE NA LXFACTORY...


OU NO TEATRO S. LUIZ ÉM MEADOS DE ABRIL...

ALÉM DA CULTURGEST, NA FÁBRICA BRAÇO DE PRATA OU NO ONDA JAZZZ...

O JAZZ ESTÁ VIVO E RECOMENDA-SE..

quinta-feira, 1 de abril de 2010

JOANA VASCONCELOS EM ACÇÃO...


AINDA ESTOU VIVO...

Pelo andamento deste blog poderia parecer que o seu autor teria abandonado completamente a escrita ou poderia parecer que algo de estranho se teria passado...
De facto aconteceram (provavelmente acontecem sempre) ambas as coisas. As circunstâncias da vida assim o determinaram. Não escrevi uma linha porque não tinha vontade para tal... As razões são triviais: estou cansado de muita coisa... E hoje voltei para escrever isto e pouco mais. Não sei se a vontade de escrever vai ou não voltar. Dependerá de "razões que o coração tem e a razão desconhece"...
Das coisas que fiz durante este tempo destaco: a exposição da selecção de obras de Joana Vasconcelos no CCB e o concerto do pianista João Paulo com o baterista Pedro Delgado (acompanhados pelo contabaixo António Quintino e pelo saxofonista Gutto) na Fábrica Braço de Prata.