domingo, 30 de maio de 2010

"IO SONO L' AMORE" ...

"Atente-se na "chave" que dá título a este grandíssimo filme: Maria Callas, ela própria, interpretando a ária da "Mamma Morta" de Giordano, na banda-sonora do "Filadélfia" de Jonathan Demme, que Tilda Swinton vê uma noite na cama à beira de adormecer, antes de o marido chegar e mudar de canal sem sequer lhe perguntar o que está a ver. A frase que Callas canta é "Io sono l'amore" - "eu sou o amor" - e é nesse momento em que o marido a ignora como mera presença utilitária que a divina, gloriosa Tilda toma perfeita consciência do seu papel na poderosa família milanesa. Ela é a verdadeira "mamma morta" (aliás, mais tarde, alguém lhe dirá "tu não existes"), até o amor lhe cair do céu, numa noite de Inverno, na pessoa de um visitante inesperado que nem sequer fica para tomar café". Jorge Mourinha (Crítico do Público)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

ODE TRIUNFAL, Álvaro de Campos

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis! Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés – oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la&foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocottes;
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro! (Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo?)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez&à-la-caisse, grandes crimes –
Das colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos com uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, betão de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parcks.
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento da deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo dos navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá-hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah! olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares,...

sexta-feira, 21 de maio de 2010

PORTUGAL E A GRÉCIA...
"...Nós estamos num estado comparável somente à Grécia: mesma pobreza, mesma dignidade política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento de carácteres, mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas quando se fala num país caótico e que pela sua decadência progressiva, poderá ...vir a ser riscado do mapa da Europa, citam-se a par , a Grécia e Portugal".
Quem foi o responsável pela produção desta frase?
a) Paulo Pedroso no Banco Corrido?
b) Carvalho da Silva num dos seus discursos arrebatados às massas?
c) Eugénio Rosa nos seus estudos semanais e seminais?
d) Medina Carreira nos seus animados diálogos com o Mário Crespo?
e) Outro?


A RESPOSTA CERTA É.............. OUTRO!
Eça de Queirós, As Farpas, 1872

quarta-feira, 12 de maio de 2010

ESTADO LAICO, PESSOAS TOLERANTES...

A tolerância de ponto decidida pelo Estado a propósito de um acontecimento religioso (como é a visita do Papa Bento XVI a Portugal) é sempre uma decisão polémica. Em primeiro lugar pela simples razão que num Estado fundado no valor da Liberdade (como o nosso) é possível exprimir as concepções próprias, religiosas ou outras. Para além disso sabemos que as Leis Fundamentais deste Estado estabelecem a separação (mais ou menos relativa) dos assuntos Civis e das Crenças Religiosas. Na prática não é fácil conjugar os valores da Liberdade e da Tolerância pelo facto da Sociedade ser formada por Pessoas que, apesar de serem iguais, também são diferentes. E se uma pessoa está convicta que, por exemplo, a vida é um valor absoluto estabelecido por Deus, como é que pode aceitar a lei da interrupção voluntária da gravidez? A (boa) convivência exige estudo, disposição para comunicar e para ouvir. E nada disto é fácil: é preciso encontrar tempo...

sábado, 8 de maio de 2010

SITUAÇÕES-LIMITE...

I -Filme AQUÁRIO : Uma adolescente, numa família complicada, leva ao limite a sua capacidade de comunicar e de sentir...

II- Filme HUMPDAY : dois amigos levam ao limite a hipótese de transformar em "obra de arte" o possível sexo entre os dois...

ANTÍGONA, de Sófocles
Marta Várzeas
Surpreendentemente, naquela que parece ser a peça mais política de Sófocles – o que, nos termos de um ateniense do séc. V a.C., equivaleria a dizer “a peça de tema mais masculino” – é uma figura feminina que surge catapultada para o centro do conflito trágico onde vai defrontar um homem, precisamente aquele que detém o poder máximo na cidade de Tebas, local da acção. Desengane‑se, porém, quem
eventualmente espere assistir a uma discussão – anacrónica, aliás – sobre os direitos das mulheres. Antígona pode ser objecto de leituras feministas ou de estudos de género, mas os problemas que coloca são muito mais vastos do que o que tais interpretações poderão fazer crer. Se, na peça de Sófocles, a personagem feminina ousa desafiar um homem poderoso, essa é tão‑somente a consequência inevitável
da sua escolha e não um propósito deliberado. Em momento algum a vemos reclamar direitos e muito menos o de ter voz no espaço público ou o de criticar as leis da cidade. Antígona nada tem de uma sufragista avant la lettre. Se algum direito reclama é apenas o de cumprir um dever – o de prestar honras fúnebres ao irmão. Tratando‑se de um dever sagrado, ele não é, todavia, sentido como uma imposição
vinda do exterior, mas como algo cuja origem se encontra no mais profundo do seu ser: um visceral sentido de solidariedade familiar, dos laços de consanguinidade, e especialmente da sua condição de irmã – principal traço que a define como pessoa. Mas é porventura aí, na profundidade do ser, que convergem vontade humana e vontade divina.

Marguerite Yourcenar
Que diz o profundo meio‑dia? O ódio paira sobre Tebas como um sol monstruoso. Após a morte da Esfinge, a cidade ignóbil ficou sem segredos: tudo acaba por vir a lume. A sombra desce ao nível das casas, das bases das árvores, tal como a água insípida no fundo das cisternas: os quartos deixaram de ser poços de obscuridade, depósitos de frescura. Os passeantes parecem sonâmbulos numa interminável noite branca. Jocasta enforcou‑se para nunca mais ver o sol. Dorme‑se em pleno dia; ama‑se em
pleno dia. Os que dormem, deitados no meio da rua, têm o ar de quem se suicidou; os amantes são cães que se enroscam ao sol. Os corações estão secos como os campos; o coração do novo rei está seco como um rochedo. Uma tamanha secura atrai o sangue. O ódio infecta as almas; as radiografias do sol corroem as consciências sem diminuírem o seu cancro. Édipo ficou cego de tanto manipular aqueles raios
sombrios. Apenas Antígona suporta as flechas arremessadas pelo arco de luz de Apolo, como se a dor lhe servisse de óculos escuros. Ela abandona esta cidade de argila cozida ao lume em que os rostos endurecidos são feitos da terra dos túmulos; acompanha Édipo para fora das portas escancaradas que parecem vomitá‑‑lo. Ela conduz ao longo das estradas do exílio esse pai que é ao mesmo tempo o seu trágico irmão mais velho: ele abençoa a culpa feliz que o lançou sobre Jocasta, como se para ele o incesto com a mãe tivesse sido apenas um meio de gerar para si uma irmã. Ela não descansa enquanto
não o vir repousar numa noite mais definitiva do que a cegueira humana, deitado na cama das Fúrias que se metamorfoseiam de imediato em deusas protectoras, visto que toda a dor à qual nos abandonamos se transforma em serenidade. Ela recusa a esmola de Teseu, que lhe oferece vestidos, roupa fresca, um lugar na viatura pública para regressar a Tebas: volta a pé à cidade que vê um crime naquilo que é apenas um desastre, um exílio naquilo que é apenas uma partida, um castigo naquilo que é apenas uma fatalidade.