quinta-feira, 22 de abril de 2010

II
Rafael

Eu nasci na sombra de uma herança que se cria honrada, uma grande herdade. Não se chamava assim, mas agora tanto faz. Sem ter corrido o mundo, parecia-me a mim grande, espalhada aqui e ali, ocupando quase tudo, galgando a cada parcela e cada uma posta a render. Uma casa afidalgada nem sei desde quando, talvez no tempo dos liberais. Ora, mas isso foi na outra ilha, talvez mesmo antes, uma casa que tinha sido desde sempre assim, dizia a minha mãe, e a mãe dela, a avó a balouçar na cadeira, cabeceando, com uma manta de lã grossa aos pés. Todas tinham servido, uma linhagem de ajudantes prestos, prestáveis e pobres.
Uma mão que invisível lhes amassou a memória e lhes talhou as vísceras. Era assim, e ela não se queixava. Tinha a determinação interior arraigada, como se se tratasse do sono de um sonâmbulo que não se deve despertar, de cabeça baixa desvendando o chão, a minha mãe calando sempre quase tudo.
Que eu passasse todo o dia ensimesmado era o menos, ainda era novo, seria de feitio, havia de mudar.
Já era uma sorte termos um tecto, e sempre trabalho e pão. Esse pão nosso de cada dia à mesa todos os dias. Deus seja louvado! Que eu não me queixasse nunca mais, que podia ser punido e levado para longe dela.

O CÃO DAS ILHAS, Maria da Conceição Caleiro, Sextante Editora, 2009, pág. 23.

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