domingo, 29 de novembro de 2009

OS TEXTOS DA BÍBLIA E DE SARAMAGO... (Cont.)

A) GÉNESIS, 5, 3-8; 6, 1-5:

"Adão, tendo chegado à idade de centro e trinta anos, gerou um filho à sua imagem e semelhança, a quem chamou Set, e, depois de o ter gerado, vivei ainda oitocentos anos, e gerou filhos e filhas. Asssim, Adão viveu novecentos e trinta anos e depois morreu. Set, com a idade de cento e cinco anos, gerou Enós e, depois de tê-lo gerado, viveu ainda oitocentos e sete anos e gerou filhos e filhas. Assim, Set viveu novecendos e doze anos e depois morreu.(...). Quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a terra e geraram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens (1) eram formosas e tomaram-nas por esposas a seu gosto.(...). viu, portanto, o Senhor que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que todos os instintos e propósitos do seu coração estavam continuamente voltados para o mal".
(1) Neste passo o comentador oficioso do texto bíblico acrescenta o seguinte: "os filhos de Deus" são os descendentes de Set, que se conservaram bons e religiosos; "as filhas dos homens" pertencem à linhagem de Caim, perversa e ímpia. Do Cruzamento das duas linhagens resultou (como costuma acontecer, pois a companhia dos maus arruina os bons) uma corrupção sempre maior. Sem comentários!

B) TEXTO DE SARAMAGO:

"Set, o filho terceiro da família, só virá ao mundo cento e trinta anos depois, não porque a gravidez materna precisasse de tanto tempo para rematar a fabricação de um novo descendente, mas porque as gónadas do pai e da mãe, os testículos e o útero respectivamente, haviam tardado mais de um século a amadurecer e a desenvolver suficiente potência generativa. Há que dizer aos apressados que o fiat foi uma vez e nunca mais, que um homem e uma mulher não são máquinas de encher chouriços, as hormonas são coisa muito complicada, não se produzem assim
do pé para a mão, não se encontram nas farmácias nem nos supermercados, há que dar tempo ao tempo. Antes de set tinham vindo ao mundo, com escassa diferença de tempo entre eles, primeiro Caim e depois Abel. O que não pode ser deixado sem imediata referência é o profundo aborrecimento que foram tantos anos sem vizinhos, sem distracções, sem uma criança gatinhando entre a cozinha e o salão, sem outras visitas que as do senhor, e mesmo essas
pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência, dez, quinze, vinte, cinquenta anos, imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos abandonados na floresta do universo, ainda que não tivessem sido capazes de explicar o que fosse isso de órfãos e abandonos. É verdade que dia sim, dia não, e este não com altíssima frequência também sim, adão dizia a eva, Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa. Por fora, salvo alguns pozinhos que vão escorrendo aqui e ali de
minúsculos orifícios, o atentado mal se percebe, mas lá por dentro a procissão é outra, não tardará muito que venha por aí abaixo o que tão firme havia parecido. Em situações como esta, há quem defenda que o nascimento de um filho pode ter efeitos reanimadores, senão da libido, que é obra de químicas muito mais complexas que aprender a mudar uma fralda, ao menos dos sentimentos, o que, reconheça-se, já não é pequeno ganho. Quanto ao senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se adão e eva haviam tido problemas com a instalação
doméstica, a segunda para saber se tinham beneficiado alguma coisa da experiência da vida
campestre e a terceira para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos outros paraísos existentes no espaço celeste. De facto, só viria a aparecer muito mais tarde, em data de que não ficou registo, para expulsar o infeliz casal do jardim do éden pelo crime nefando de terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Este episódio, que deu origem à primeira definição de um até aí ignorado pecado original, nunca ficou bem
explicado. Em primeiro lugar, mesmo a inteligência mais rudimentar não teria qualquer dificuldade em compreender que estar informado sempre será preferível a desconhecer, mormente em matérias tão delicadas como são estas do bem e do mal, nas quais qualquer um se arrisca, sem dar por isso, a uma condenação eterna num inferno que então ainda estava por inventar. Em segundo lugar, brada aos céus a imprevidência do senhor, que se realmente não
queria que lhe comessem do tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma cerca de arame farpado. E, em terceiro lugar, não foi por terem desobedecido à ordem de deus que adão e eva descobriram que estavam nus. Nuzinhos, em pelota estreme, já eles andavam quando iam para a cama, e se o senhor nunca havia reparado em tão evidente falta de pudor, a culpa era da sua cegueira de progenitor, a tal, pelos vistos incurável, que nos impede de ver que os nossos filhos, no fim de contas, são tão bons ou tão maus como os demais".

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