domingo, 25 de outubro de 2009

O TEXTO BÍBLICO E O TEXTO DE SARAMAGO:

Génesis, cap. 4:

"Abel foi pastor e Caim foi agricultor. Ao fim de um certo tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de produtos da terra e Abel ofereceu as primeiras e melhores crias do seu gado. Ora, Deus ficou contente com Abel e com a sua oferta; mas não ficou satisfeito com Caim nem com a sua oferta. Por isso, Caim ficou muito irritado e de má cara. Deus disse-lhe então: "Por que é que te irritaste assim e ficaste com tão má cara? Se te comportares bem, podes andar de cabeça erguida, mas se te comportares mal, tens o pecado a espreitar à porta, procurando vencer-te. E contudo tu podes dominá-lo.
Certo dia, depois de Caim ter falado com Abel, seu irmão, saíram para o campo. Encontravam-se lá, quando Caim atacou o irmão e o matou.
O Senhor perguntou a Caim: "Onde está o teu irmão?" "Não sei. Será que eu sou o guarda do meu irmão?", respondeu ele.
E o Senhor disse-lhe: "Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama por mim desde o solo. Agora, pois, maldito sejas longe do solo que abriu a sua boca para beber de tua mão o sangue de teu irmão! Quando o cultivares, negar-te-á as suas riquezas; andarás pela terra errante e fugitivo!".

O novo livro de José Saramago, Caim, começa assim:

«Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama.»


SUGESTÃO: continuar a ler a Bíblia e o livro de Saramago...

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