sexta-feira, 18 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO (1922-2010)

“D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça. Além disso, quem se extenua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha,e também por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há-de ser naturalmente suplicante, tanto em novenas organizadas como em orações ocasionais. Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade total. depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda não fez vinte e dois anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a barriga de D. Maria Ana. Mas Deus é grande. Quase tão grande como Deus é a basílica de S. Pedro de Roma que el-rei está a levantar. É uma construção sem caboucos nem alicerces, assenta em tampo de mesa que não precisaria ser tão sólido para a carga que suporta, miniatura de basílica dispersa em pedaços de encaixar, segundo o antigo sistema de macho e fêmea, que, à mão reverente, vão sendo colhidos pelos quatro camaristas de serviço. A arca donde os retiram cheira a incenso, e os veludos carmesins que os envolvem, separadamente, para que se não trilhe o rosto da estátua na aresta do pilar, refulgem à luz dos grossíssimos brandões. A obra vai adiantada. Já todas as paredes estão firmes nos engonços, aprumadas se vêem as colunas sob a cornija percorrida de latinas letras que explicam o nome e o título de Paulo V Borghese e que el-rei há muito tempo deixou de ler, embora sempre os seus olhos se comprazam no número ordinal daquele papa, por via da igualdade do seu próprio. Em rei seria defeito a modéstia. Vai ajustando nos buracos apropriados da cimalha as figuras dos profetas e dos santos, e por cada uma fez vénia o camarista, afasta as dobras preciosas do veludo,aí está uma estátua oferecida na palma da mão, um profeta de barriga para baixo, um santo que trocou os pés pela cabeça, mas nestas involuntárias irreverências ninguém repara, tanto mais que logo el-rei reconstitui a ordem e a solenidade que convêm às coisas sagradas, endireitando e pondo em seu lugar as vigilantes entidades. Do alto da cimalha o que elas vêem não é a Praça de S. Pedro, mas o rei de Portugal e os camaristas que o servem." (MEMORIAL DO CONVENTO).

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