sábado, 8 de maio de 2010

ANTÍGONA, de Sófocles
Marta Várzeas
Surpreendentemente, naquela que parece ser a peça mais política de Sófocles – o que, nos termos de um ateniense do séc. V a.C., equivaleria a dizer “a peça de tema mais masculino” – é uma figura feminina que surge catapultada para o centro do conflito trágico onde vai defrontar um homem, precisamente aquele que detém o poder máximo na cidade de Tebas, local da acção. Desengane‑se, porém, quem
eventualmente espere assistir a uma discussão – anacrónica, aliás – sobre os direitos das mulheres. Antígona pode ser objecto de leituras feministas ou de estudos de género, mas os problemas que coloca são muito mais vastos do que o que tais interpretações poderão fazer crer. Se, na peça de Sófocles, a personagem feminina ousa desafiar um homem poderoso, essa é tão‑somente a consequência inevitável
da sua escolha e não um propósito deliberado. Em momento algum a vemos reclamar direitos e muito menos o de ter voz no espaço público ou o de criticar as leis da cidade. Antígona nada tem de uma sufragista avant la lettre. Se algum direito reclama é apenas o de cumprir um dever – o de prestar honras fúnebres ao irmão. Tratando‑se de um dever sagrado, ele não é, todavia, sentido como uma imposição
vinda do exterior, mas como algo cuja origem se encontra no mais profundo do seu ser: um visceral sentido de solidariedade familiar, dos laços de consanguinidade, e especialmente da sua condição de irmã – principal traço que a define como pessoa. Mas é porventura aí, na profundidade do ser, que convergem vontade humana e vontade divina.

Marguerite Yourcenar
Que diz o profundo meio‑dia? O ódio paira sobre Tebas como um sol monstruoso. Após a morte da Esfinge, a cidade ignóbil ficou sem segredos: tudo acaba por vir a lume. A sombra desce ao nível das casas, das bases das árvores, tal como a água insípida no fundo das cisternas: os quartos deixaram de ser poços de obscuridade, depósitos de frescura. Os passeantes parecem sonâmbulos numa interminável noite branca. Jocasta enforcou‑se para nunca mais ver o sol. Dorme‑se em pleno dia; ama‑se em
pleno dia. Os que dormem, deitados no meio da rua, têm o ar de quem se suicidou; os amantes são cães que se enroscam ao sol. Os corações estão secos como os campos; o coração do novo rei está seco como um rochedo. Uma tamanha secura atrai o sangue. O ódio infecta as almas; as radiografias do sol corroem as consciências sem diminuírem o seu cancro. Édipo ficou cego de tanto manipular aqueles raios
sombrios. Apenas Antígona suporta as flechas arremessadas pelo arco de luz de Apolo, como se a dor lhe servisse de óculos escuros. Ela abandona esta cidade de argila cozida ao lume em que os rostos endurecidos são feitos da terra dos túmulos; acompanha Édipo para fora das portas escancaradas que parecem vomitá‑‑lo. Ela conduz ao longo das estradas do exílio esse pai que é ao mesmo tempo o seu trágico irmão mais velho: ele abençoa a culpa feliz que o lançou sobre Jocasta, como se para ele o incesto com a mãe tivesse sido apenas um meio de gerar para si uma irmã. Ela não descansa enquanto
não o vir repousar numa noite mais definitiva do que a cegueira humana, deitado na cama das Fúrias que se metamorfoseiam de imediato em deusas protectoras, visto que toda a dor à qual nos abandonamos se transforma em serenidade. Ela recusa a esmola de Teseu, que lhe oferece vestidos, roupa fresca, um lugar na viatura pública para regressar a Tebas: volta a pé à cidade que vê um crime naquilo que é apenas um desastre, um exílio naquilo que é apenas uma partida, um castigo naquilo que é apenas uma fatalidade.

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