OS TEXTOS DA BÍBLIA E DE SARAMAGO... (Cont.)
A) GÉNESIS, 5, 3-8; 6, 1-5:
"Adão, tendo chegado à idade de centro e trinta anos, gerou um filho à sua imagem e semelhança, a quem chamou Set, e, depois de o ter gerado, vivei ainda oitocentos anos, e gerou filhos e filhas. Asssim, Adão viveu novecentos e trinta anos e depois morreu. Set, com a idade de cento e cinco anos, gerou Enós e, depois de tê-lo gerado, viveu ainda oitocentos e sete anos e gerou filhos e filhas. Assim, Set viveu novecendos e doze anos e depois morreu.(...). Quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a terra e geraram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens (1) eram formosas e tomaram-nas por esposas a seu gosto.(...). viu, portanto, o Senhor que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que todos os instintos e propósitos do seu coração estavam continuamente voltados para o mal".
(1) Neste passo o comentador oficioso do texto bíblico acrescenta o seguinte: "os filhos de Deus" são os descendentes de Set, que se conservaram bons e religiosos; "as filhas dos homens" pertencem à linhagem de Caim, perversa e ímpia. Do Cruzamento das duas linhagens resultou (como costuma acontecer, pois a companhia dos maus arruina os bons) uma corrupção sempre maior. Sem comentários!
B) TEXTO DE SARAMAGO:
"Set, o filho terceiro da família, só virá ao mundo cento e trinta anos depois, não porque a gravidez materna precisasse de tanto tempo para rematar a fabricação de um novo descendente, mas porque as gónadas do pai e da mãe, os testículos e o útero respectivamente, haviam tardado mais de um século a amadurecer e a desenvolver suficiente potência generativa. Há que dizer aos apressados que o fiat foi uma vez e nunca mais, que um homem e uma mulher não são máquinas de encher chouriços, as hormonas são coisa muito complicada, não se produzem assim
do pé para a mão, não se encontram nas farmácias nem nos supermercados, há que dar tempo ao tempo. Antes de set tinham vindo ao mundo, com escassa diferença de tempo entre eles, primeiro Caim e depois Abel. O que não pode ser deixado sem imediata referência é o profundo aborrecimento que foram tantos anos sem vizinhos, sem distracções, sem uma criança gatinhando entre a cozinha e o salão, sem outras visitas que as do senhor, e mesmo essas
pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência, dez, quinze, vinte, cinquenta anos, imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos abandonados na floresta do universo, ainda que não tivessem sido capazes de explicar o que fosse isso de órfãos e abandonos. É verdade que dia sim, dia não, e este não com altíssima frequência também sim, adão dizia a eva, Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa. Por fora, salvo alguns pozinhos que vão escorrendo aqui e ali de
minúsculos orifícios, o atentado mal se percebe, mas lá por dentro a procissão é outra, não tardará muito que venha por aí abaixo o que tão firme havia parecido. Em situações como esta, há quem defenda que o nascimento de um filho pode ter efeitos reanimadores, senão da libido, que é obra de químicas muito mais complexas que aprender a mudar uma fralda, ao menos dos sentimentos, o que, reconheça-se, já não é pequeno ganho. Quanto ao senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se adão e eva haviam tido problemas com a instalação
doméstica, a segunda para saber se tinham beneficiado alguma coisa da experiência da vida
campestre e a terceira para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos outros paraísos existentes no espaço celeste. De facto, só viria a aparecer muito mais tarde, em data de que não ficou registo, para expulsar o infeliz casal do jardim do éden pelo crime nefando de terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Este episódio, que deu origem à primeira definição de um até aí ignorado pecado original, nunca ficou bem
explicado. Em primeiro lugar, mesmo a inteligência mais rudimentar não teria qualquer dificuldade em compreender que estar informado sempre será preferível a desconhecer, mormente em matérias tão delicadas como são estas do bem e do mal, nas quais qualquer um se arrisca, sem dar por isso, a uma condenação eterna num inferno que então ainda estava por inventar. Em segundo lugar, brada aos céus a imprevidência do senhor, que se realmente não
queria que lhe comessem do tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma cerca de arame farpado. E, em terceiro lugar, não foi por terem desobedecido à ordem de deus que adão e eva descobriram que estavam nus. Nuzinhos, em pelota estreme, já eles andavam quando iam para a cama, e se o senhor nunca havia reparado em tão evidente falta de pudor, a culpa era da sua cegueira de progenitor, a tal, pelos vistos incurável, que nos impede de ver que os nossos filhos, no fim de contas, são tão bons ou tão maus como os demais".
domingo, 29 de novembro de 2009
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